Eduard Genís Sol, julho 2020
A alma etérea aloja-se no fígado (肝藏魂, Gān cáng hún), concretamente no sangue do fígado. Representa o aspecto mais subtil da consciência e a sua natureza yáng precisa a ancoragem do yīn-sangue para enraizar-se, para se expressar através da imaginação, do idealismo, da criação e dos sonhos.
O caractere 魂, Hún, alma etérea, está formado por dois radicais: a esquerda, 云, Yún, nuvens, e a direita, 鬼, Guǐ, espectros. Globalmente, este caractere sugere a ideia de um espectro que vagueia pelo mundo dos espíritos e a existência do mesmo é independente ao espírito do coração. Apesar disto, a interacção entre o espírito (神, Shén) e a alma etérea (魂, Hún) constitui a base da vida psíquica da pessoa.
A alma etérea representa a vitalidade espiritual, o aspecto mais subtil da consciência, a vida psíquica da pessoa associada com o Céu e, portanto, também com o movimento, a actividade , o calor e o yáng.
A alma etérea penetra no corpo ao terceiro dia depois do nascimento. Depois da morte, abandona este mesmo corpo para voltar para o Céu, com a tendência de fixar-se na estirpe espiritual de procedência. Tradicionalmente, na China, os rituais de enterramento e de pena têm um objectivo, entre os quais, ajudar a alma etérea a voltar para o Céu e à sua linha espiritual.
Uma característica fundamental da alma etérea é a ideia de movimento, a tal ponto que em alguns textos chineses, está definida como aquilo que vai e vem (时起时落, Shí qǐ shí luò). Trata-se de um movimento de ideias, de projectos, de planos, de ilusões. Um movimento em direcção aos outros entre relações humanas. Um movimento de ida e vinda em ligação com o espírito do coração (心神, Xīn shén).
A alma etérea constitui um nível de consciência diferente ao do espírito do coração. Um nível sem racionalidade mas que, pelo contrário, é um impulsionador da intuição, do idealismo, da inspiração, da interacção e das relações interpessoais. Este movimento da alma etérea assiste ao espírito do coração no desenvolvimento das actividades mentais. O espírito engloba o pensamento racional, a alma etérea, a inspiração, a criação. O primeiro processa e escolhe entre tudo o que gere e lhe propõe a segunda. Mas esta ligação alma etérea-espírito requer um movimento da primeira em relação à segunda. Este movimento necessita o impulso do Qì do fígado. Se este está pressurizado em excesso e estancado (肝郁气滞, Gān yù qì zhì), a inspiração, a criação e as relações interpessoais também estarão, já que este movimento da alma etérea também incide na esfera de relação como responsável da capacidade de interacção e empatia entre as pessoas. De maneira que a falta de projectos vitais, de inspiração, de ilusões, de relações interpessoais, é devido a uma falta de movimento, a um constrangimento da alma etérea que no lhe permite comunicar com o espírito do coração.
A alma etérea reside no sangue do fígado e a sua capacidade de movimento depende do Qì do fígado. É por isso, que o sangue do fígado tem de ser abundante para permitir este movimento, que seja harmonioso e impedir que seja excessivo ou que se estanque, entendendo-se que quando falamos do sangue do fígado, fazemos referência ao yīn-sangue do fígado. Se estes aspectos são deficientes ou se o calor agita-os, a alma etérea vagueia sem uma raiz que possa prendê-la. Esta situação manifesta-se especialmente durante a noite em forma de insónia ou de um sono agitado com diversidade de sonhos. De maneira que, a duração e a qualidade do sono são um bom indicador do estado da alma etérea, apesar de que também estão inter-relacionados com o estado do sangue do coração, onde habita o espírito.
A fluidez do Qì do fígado significa o impulso do movimento que proporciona as idas e vindas da alma etérea. Se o Qì do fígado é insuficiente ou está parado, o movimento da alma etérea ficará limitado e a pessoa estará deprimida. Ao contrário, se é excessivo, se há uma ascensão hiperactiva do yáng do fígado (肝阳上亢, Gān yáng shàng kàng), ou um fogo do fígado que se inflama (肝火上炎, Gān huǒ shàng yán), o movimento da alma etérea também será excessivo, e manifesta-se a través da agitação, cólera e se chega aos limites passaria a doenças mentais.
Definitivamente, se o sangue e o Qì do fígado são abundantes e fluiem livremente, a alma etérea estará enraizada e o seu movimento será adequado. Assim, emite um fluxo de ideias, de intuições, de criação e de planos derivados para o espírito do coração (心神, Xīn shén), que este terá de assimilar, filtrar, seleccionar e controlar. Ao contrário, se o sangue e o Qì do fígado são insuficientes, o movimento da alma etérea também será. Esta contracção anímica gerará uma falta de sentido à vida e uma falta de coragem e de resolução, de maneira que a pessoa terá enormes dificuldades para relacionar-se, para gerar ideias, para planificar, para criar, para tomar decisões e assim perderá a coragem facilmente.
A contracção e a expansão da alma etérea manifesta-se em estados anímicos contrários segundo semelhança yīn–yáng: introversão-extraversão, passividade-actividade, tédio-vitalidade. Enquanto houver esta dualidade anímica e se situe dentro de um marco de regularização fisiológica, a saúde mental e espiritual da pessoa estará dentro dos limites da normalidade. Se não é assim, se o movimento da alma etérea excede estes limites, é quando aparecem as confusões mentais e espirituais, polarizadas genericamente em forma de depressão-agitação.
Uma contracção excessiva da alma etérea pode ser devido a um vazio do Qì do fígado (肝气虚, Gān qì xū), a uma sobrepressão do fígado com um estancamento do Qì (肝郁气滞, Gān yù qì zhì), ou a um vazio do yáng do fígado (肝阳虚, Gān yáng xū). Nos dois primeiros casos, o movimento ascendente da alma etérea não se pode produzir por falta de propulsão. No terceiro caso, é de certa forma, uma repetição do mesmo, já que é necessário ter em conta que o yáng Qì (阳气) não representa somente aquecimento, mas também mobilização.
A expansão excessiva da alma etérea pode ser devido a padrões de plenitude (实证, Shí zhèng) ou a padrões de vazio (虚证, Xū zhèng). No primeiro caso, o calor (热, Rè), o fogo (火, Huǒ) ou a ascensão hiperactivo do yáng do fígado (肝阳上亢, Gān yáng shàng kàng), gerem um movimento excessivo de expansão da alma etérea. No segundo caso, um vazio do yīn-sangue do fígado (肝阴血虚, Gān yīn xuè xū) faz que a alma etérea não possa enraizar-se e que, pela sua natureza yáng –ascendente e centrífuga– se agite.
O movimento de expansão da alma etérea tem como objectivo a interacção desta com o espírito do coração (心神, Xīn shén). Este último não pode funcionar adequadamente sem a acção da anterior. Sem esta expansão produz-se uma depressão. Se a expansão é excessiva, o espírito fica sobrecarregado de informação, e desbordado, passa a neurose. Adicionalmente, com as duas condições podem piorar com a presença de mucosidades confundindo os orifícios do coração (痰迷心窍, Tán mí xīn qiào), já que aquelas são obstáculos para a ligação entre a alma etérea e o espírito do coração.
Tal como a alma etérea representa a vitalidade espiritual da pessoa, a alma corporal (魄, Pò), alojada no pulmão, representa a sua vitalidade orgânica. O equilíbrio entre os dois espíritos é indispensável. A vida mantém-se na medida em que a alma etérea ascende para unir-se com a alma corporal e que esta descende para unir-se à alma etérea, e assim, enraíza-la porque, pela sua natureza ascendente, esta última tem tendência a subir para voltar ao Céu, à sua origem. Paralelamente, a alma corporal tem tendência a descender para voltar a terra, que é de onde procede. O controle que exerce o espírito do coração (心神, Xīn shén) sobre as duas, inverte estas tendências individuais. Afortunadamente, porque se quebra a união entre a alma etérea e a corporal, isto significa a morte, da mesma maneira que significa a separação entre o yīn e o yáng. Esta complementaridade entre as duas almas expressa-se que enquanto a alma etérea associa-se com o movimento, com a actividade, com o calor, com o Céu, com o espírito do coração e com o yáng, a alma corporal associa-se com o repouso, a falta de actividade, com o frio, com a terra, com a essência e com o yīn. Desta maneira, a alma etérea e a alma corporal regulam-se mutuamente para manter a existência do ser humano através de um equilíbrio dinâmico.